16.7.10

Caché (2005, Michael Haneke)


Só queria saber como é possível viver com a sua consciência. Agora já sei.

Era uma vez um homem chamado Georges (Daniel Auteuil). Pai de uma família de classe média-alta francesa e apresentador de um programa televisivo de críticas literárias, ele vivia com sua esposa Anne (Juliette Binoche) e seu filho Pierrot. Um dia recebe um vídeo com imagens externas de sua casa. A fita cassete, embrulhada em um desenho de um desenho infantil, mostra uma cabeça espirrado-bordô em sugestão de tom de ameaça. A fita tem mais de duas horas. A presença opressiva do outro. Plano aberto e longo. Ruídos da rua. Silêncio.

Era e não era uma vez esse homem chamado Georges. Em um de seus programas, ele teria entrevistado a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que na ocasião discorreu sobre o que ela gostava de chamar de “o perigo da história única”. Para Adichie, incrível lhe parecia que mesmo ter bebido cerveja de ginja ou ter visto neve, a leitora e escritora precoce, ainda aos sete anos de idade, reproduzia em suas primeiras histórias os personagens das histórias que lia – homens mui brancos, a comer maçã e relatar a felicidade por terem luz solar. Adichie nunca havia saído da Nigéria. Não teria visto neve, entre outras coisas com as quais não podia nunca se identificar. Assim, concluiu o quão vulneráveis são os seres humanos face a uma história, especialmente as crianças.

Há um capítulo da história que narra a hostilidade entre franceses e argelinos. Todo ato cometido contra os franceses durante a Guerra da Argélia por independência, proclamada em 1962, foi considerado violento ou terrorista. Caché nos faz retomar as raízes do conflito atual, que possivelmente estão na guerra colonial. Os estereótipos contra imigrantes argelinos, hoje arraigados na cultura ocidenal, especialmente nos países europeus, foram criados na época colonial. Os argelinos foram, em várias ocasiões, considerados pelos franceses os culpados por infortúnios, como, por exemplo, a falta de emprego. Gentalha.

Depois de comer logo, antes mesmo que a comida esfriasse, Georges seguiu até a sala, onde, rodeado por livros, encontrou o responsável por aquela situação. Ele acende e não acende a luz e abre e não abre livro mais próximo em uma página qualquer. Há livros por toda a parte. Atrás da mesa, atrás de televisão... Há um livro escondido. Georges Laurent é um homem du siècle – tem medo.

O escuso livro conta-nos a história de Majid, o menino argelino amaldiçoado. Ele é adotado por uma família francesa depois de perder os pais - mortos violentamente em uma praça parisiense. Majid, um menino de tristes olhos argelinos, tem como missão vir de encontro ao leitor como se fosse um homem-bomba, como se fosse uma imagem paranóica, um gargalo da humanidade, o inocente eleito culpado, um mártir. Na infância, Georges, o filho de sangue francês, disse ao pai que Majid-orfão tossia e expelia sangue. Ele pediu ao pai que o menino matasse o galo e depois foi mandado para um orfanado. Com o passar dos anos Majid, o escuso, tornou-se vermelho demais para ser visto em público e saiu escorrendo pela casa até grudar-se no chão, junto a poeira, reduzido a nada, como uma brincadeira de mau gosto que não deveria ter feito com os outros.


Ver também:
O perigo da história única, por Chimamanda Ngozi Adichie