19.7.10

O Amigo Americano (1977, Win Wenders)

É discutível se nos finais de filmes do gênero criminoso a desgraça que acomete o assassino seria uma simples demonstração de virtuosismo por parte do tomo das leis do homem ou a aplicação mais sutil de um sistema de equilíbrio próprio da natureza. Mas certamente é uma satisfação para nós, espectadores tementes, compartilhar que o executor não goza mais, pelo menos em nossa presença, da paz de consciência e do andar despreocupado pelas ruas que é reservado aos cidadãos de bem, entendendo-se por desgraça da paranóia leve até simplesmente a morte.
A exigência do castigo obrigatório no cinema só se introduz completamente naqueles filmes mais vulgares, de violência ou terror estéticos, onde a imagem tem a intenção de não remeter propositadamente nenhuma ideia estranha ao conforto do espetáculo (suspenses, filmes de ação), e ainda naqueles onde o espetáculo subjuga até a própria imagem (filmes de guerra, musicais).
Ambas as abordagens do tema são rasas na articulação da ideia do homicídio. Não sofremos dessa necessidade de punição no tempo hábil do filme em O Amigo Americano, até porque o castigo é uma benção, ansiada antes mesmo de se tornar uma exigência do roteiro, antes até que o próprio crime seja praticado; posto que a morte é a injustiça universal (tanto para vilão quanto para o cristão), fazer por merecê-la caracterizaria a vingança sobre a própria extinção. Veja-se, por exemplo, que a morte chega para o vilão quase sempre durante o filme, enquanto é apenas sugerida ao restante do elenco principal, o que acenaria para uma possível imortalidade dos personagens que terminassem suas tramas com vida. Logo, entende-se que o privilégio mítico seria exclusivo da vilania, cujo legado estaria disponível para revisão/ampliação, dando vez a uma cadeia de releitura interminável e à perpetuação do mal frente a uma crescente falta de sentido em se eleger o bem como bom (o Bem estéril).
Mas é óbvio que há um componente ainda mais energético do que a parcialidade moral no processo duvidoso que sedimenta na cabeça do futuro criminoso a possibilidade de sair ileso, física/moralmente, do ato homicida. Jonathan (Bruno Ganz) se vê inebriado por um teatro grotesco, da parte dos mandantes, e por um desfile de evidências imprecisas, por conta própria, quando está prestes a se convencer que foi injustiçado pela vida. Nas palavras de seu médico - “às vezes acho que o senhor quer isso [dispor de pouco tempo de vida]” -, encontramos a justificativa de um desejo oculto demasiado forte para ser contornado pela sensatez de pessoas próximas e de confiança, como sua esposa e o próprio médico. A falta de expectativas acresce de franjas cintilantes e ornados seu delírio. Assim Jonathan fica à beira do abismo: ele ainda dispõe de certo arbítrio e a única coisa que poderia tê-lo feito recusar a proposta do assassinato seria o consolo encontrado na amizade de Tom Ripley (Dennis Hopper), o amigo americano, mas o próprio declara que “a amizade não é mais possível”, embora ele também a ansiasse. A amizade em O Amigo Americano soa tão irreal quanto o retorno dos Beatles a Hamburgo - ainda que alimentada pelo eco de suas canções: concretas, possíveis e vivas na mente quase apagada de Jonathan.
Wim Wenders deixa claro desde a saturação cromática até a devastação da doença sanguínea em seu personagem que não existem meios-tons quando se filma a decadência patológica. O tour cinzento pela Europa e a impossibilidade do sol contrastam com a Hollywood ensolarada de finais felizes e entretenimento de verão, ainda que a jornada pelo velho mundo conte com trilha de suspense hitchcokiano, perseguições/fugas alucinantes e andamento tipicamente americano. Raskolnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoievski, invejaria o êxito de Jonathan na confrontação de sua tese com a realidade e seu destino triunfal sobre a morte anônima e a vida sem legado. Pois o que poderia passar por uma leitura da parcialidade moral de um homem que desconhece o andamento do próprio processo de julgamento revela-se a afirmação de uma conduta (apesar de ilógica) mais sábia se comparada à adequação social sustentada até então, que vê no assassínio uma plataforma sólida de perpetuação do legado pessoal.
A cidade cheia de caminhos/becos/escadas/túneis, a doença progressiva, o declínio da consciência e uma queda pessoal pela emolduração perfeita de quadros e de situações (incluindo o ocaso da vida) deram todo escopo para que Jonathan se decidisse pelo assassinato.