13.8.10

AO REDOR DO MUNDO OU AO REDOR DA TERRA?

Pense em 2001: Uma Odisséia no Espaço. Ignore a pujança cinematográfica, o dantismo acoplado ao filme. Veja-o como um poderoso cartaz que resistiu por décadas, pregado por aí, nas mais remotas portas; seus axiomas não trazem rupturas, não fizeram escola e nem se mostraram, apesar das distorções de centenas de milhares de passantes, ortodoxos ou revolucionários em qualquer acepção. São axiomas petrificados, sem se passarem por mandamentos. Antimperativos, não orientam nem distraem, não evocam, não explicam, não demonstram. São simplesmente uns conjuntos vazios, um catálogo inindicificável de sensações extremamente vagas; tão vagas que não se pode cruzar com elas sem aquiescer inconscientemente, nem negar sua indiferença ríspida e penetrante.

O espaço é o espaço conhecido. O universo é até onde os olhos enxergam. O traço de 2001 que representa esse berço comum e alcance físico da humanidade não é o infinito (impossível), mas cada passo que se dá em direção ao novo, à porção desconhecida do possível.

19.7.10

O Amigo Americano (1977, Win Wenders)

É discutível se nos finais de filmes do gênero criminoso a desgraça que acomete o assassino seria uma simples demonstração de virtuosismo por parte do tomo das leis do homem ou a aplicação mais sutil de um sistema de equilíbrio próprio da natureza. Mas certamente é uma satisfação para nós, espectadores tementes, compartilhar que o executor não goza mais, pelo menos em nossa presença, da paz de consciência e do andar despreocupado pelas ruas que é reservado aos cidadãos de bem, entendendo-se por desgraça da paranóia leve até simplesmente a morte.
A exigência do castigo obrigatório no cinema só se introduz completamente naqueles filmes mais vulgares, de violência ou terror estéticos, onde a imagem tem a intenção de não remeter propositadamente nenhuma ideia estranha ao conforto do espetáculo (suspenses, filmes de ação), e ainda naqueles onde o espetáculo subjuga até a própria imagem (filmes de guerra, musicais).
Ambas as abordagens do tema são rasas na articulação da ideia do homicídio. Não sofremos dessa necessidade de punição no tempo hábil do filme em O Amigo Americano, até porque o castigo é uma benção, ansiada antes mesmo de se tornar uma exigência do roteiro, antes até que o próprio crime seja praticado; posto que a morte é a injustiça universal (tanto para vilão quanto para o cristão), fazer por merecê-la caracterizaria a vingança sobre a própria extinção. Veja-se, por exemplo, que a morte chega para o vilão quase sempre durante o filme, enquanto é apenas sugerida ao restante do elenco principal, o que acenaria para uma possível imortalidade dos personagens que terminassem suas tramas com vida. Logo, entende-se que o privilégio mítico seria exclusivo da vilania, cujo legado estaria disponível para revisão/ampliação, dando vez a uma cadeia de releitura interminável e à perpetuação do mal frente a uma crescente falta de sentido em se eleger o bem como bom (o Bem estéril).
Mas é óbvio que há um componente ainda mais energético do que a parcialidade moral no processo duvidoso que sedimenta na cabeça do futuro criminoso a possibilidade de sair ileso, física/moralmente, do ato homicida. Jonathan (Bruno Ganz) se vê inebriado por um teatro grotesco, da parte dos mandantes, e por um desfile de evidências imprecisas, por conta própria, quando está prestes a se convencer que foi injustiçado pela vida. Nas palavras de seu médico - “às vezes acho que o senhor quer isso [dispor de pouco tempo de vida]” -, encontramos a justificativa de um desejo oculto demasiado forte para ser contornado pela sensatez de pessoas próximas e de confiança, como sua esposa e o próprio médico. A falta de expectativas acresce de franjas cintilantes e ornados seu delírio. Assim Jonathan fica à beira do abismo: ele ainda dispõe de certo arbítrio e a única coisa que poderia tê-lo feito recusar a proposta do assassinato seria o consolo encontrado na amizade de Tom Ripley (Dennis Hopper), o amigo americano, mas o próprio declara que “a amizade não é mais possível”, embora ele também a ansiasse. A amizade em O Amigo Americano soa tão irreal quanto o retorno dos Beatles a Hamburgo - ainda que alimentada pelo eco de suas canções: concretas, possíveis e vivas na mente quase apagada de Jonathan.
Wim Wenders deixa claro desde a saturação cromática até a devastação da doença sanguínea em seu personagem que não existem meios-tons quando se filma a decadência patológica. O tour cinzento pela Europa e a impossibilidade do sol contrastam com a Hollywood ensolarada de finais felizes e entretenimento de verão, ainda que a jornada pelo velho mundo conte com trilha de suspense hitchcokiano, perseguições/fugas alucinantes e andamento tipicamente americano. Raskolnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoievski, invejaria o êxito de Jonathan na confrontação de sua tese com a realidade e seu destino triunfal sobre a morte anônima e a vida sem legado. Pois o que poderia passar por uma leitura da parcialidade moral de um homem que desconhece o andamento do próprio processo de julgamento revela-se a afirmação de uma conduta (apesar de ilógica) mais sábia se comparada à adequação social sustentada até então, que vê no assassínio uma plataforma sólida de perpetuação do legado pessoal.
A cidade cheia de caminhos/becos/escadas/túneis, a doença progressiva, o declínio da consciência e uma queda pessoal pela emolduração perfeita de quadros e de situações (incluindo o ocaso da vida) deram todo escopo para que Jonathan se decidisse pelo assassinato.

16.7.10

Caché (2005, Michael Haneke)


Só queria saber como é possível viver com a sua consciência. Agora já sei.

Era uma vez um homem chamado Georges (Daniel Auteuil). Pai de uma família de classe média-alta francesa e apresentador de um programa televisivo de críticas literárias, ele vivia com sua esposa Anne (Juliette Binoche) e seu filho Pierrot. Um dia recebe um vídeo com imagens externas de sua casa. A fita cassete, embrulhada em um desenho de um desenho infantil, mostra uma cabeça espirrado-bordô em sugestão de tom de ameaça. A fita tem mais de duas horas. A presença opressiva do outro. Plano aberto e longo. Ruídos da rua. Silêncio.

Era e não era uma vez esse homem chamado Georges. Em um de seus programas, ele teria entrevistado a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que na ocasião discorreu sobre o que ela gostava de chamar de “o perigo da história única”. Para Adichie, incrível lhe parecia que mesmo ter bebido cerveja de ginja ou ter visto neve, a leitora e escritora precoce, ainda aos sete anos de idade, reproduzia em suas primeiras histórias os personagens das histórias que lia – homens mui brancos, a comer maçã e relatar a felicidade por terem luz solar. Adichie nunca havia saído da Nigéria. Não teria visto neve, entre outras coisas com as quais não podia nunca se identificar. Assim, concluiu o quão vulneráveis são os seres humanos face a uma história, especialmente as crianças.

Há um capítulo da história que narra a hostilidade entre franceses e argelinos. Todo ato cometido contra os franceses durante a Guerra da Argélia por independência, proclamada em 1962, foi considerado violento ou terrorista. Caché nos faz retomar as raízes do conflito atual, que possivelmente estão na guerra colonial. Os estereótipos contra imigrantes argelinos, hoje arraigados na cultura ocidenal, especialmente nos países europeus, foram criados na época colonial. Os argelinos foram, em várias ocasiões, considerados pelos franceses os culpados por infortúnios, como, por exemplo, a falta de emprego. Gentalha.

Depois de comer logo, antes mesmo que a comida esfriasse, Georges seguiu até a sala, onde, rodeado por livros, encontrou o responsável por aquela situação. Ele acende e não acende a luz e abre e não abre livro mais próximo em uma página qualquer. Há livros por toda a parte. Atrás da mesa, atrás de televisão... Há um livro escondido. Georges Laurent é um homem du siècle – tem medo.

O escuso livro conta-nos a história de Majid, o menino argelino amaldiçoado. Ele é adotado por uma família francesa depois de perder os pais - mortos violentamente em uma praça parisiense. Majid, um menino de tristes olhos argelinos, tem como missão vir de encontro ao leitor como se fosse um homem-bomba, como se fosse uma imagem paranóica, um gargalo da humanidade, o inocente eleito culpado, um mártir. Na infância, Georges, o filho de sangue francês, disse ao pai que Majid-orfão tossia e expelia sangue. Ele pediu ao pai que o menino matasse o galo e depois foi mandado para um orfanado. Com o passar dos anos Majid, o escuso, tornou-se vermelho demais para ser visto em público e saiu escorrendo pela casa até grudar-se no chão, junto a poeira, reduzido a nada, como uma brincadeira de mau gosto que não deveria ter feito com os outros.


Ver também:
O perigo da história única, por Chimamanda Ngozi Adichie

9.7.10

De Olhos Bem Fechados (1999, Stanley Kubrick)


Em uma das mais chocantes elipses a que um personagem de cinema já foi submetido, acompanhamos a revanche que Terry Malloy (Marlon Brando), um ex-pugilista fracassado, empreende, ao estilo Stanley Kowalski, contra si mesmo e a sociedade. Esse levante auto-infringido, categoricamente rebelde, toma proporções perigosas quando passa a ameaçar os negócios da máfia local (da qual Terry é dissidente) culminando com a morte de seu próprio irmão na insinuação de salvá-lo. Porém, a perda, ao invés de acalmar o “reformista social em combustão”, confere imediatamente um caráter mais abrangente e duplamente mais impetuoso à jornada do personagem, que, embora não se dê conta, passa a justificar uma certa violência contra desvios de conduta e imprecisões morais de qualquer natureza. Não demora que Terry coagule essa violência sob o signo da lei e dê nome aos bois no esquema de tributação ilegal praticado pela máfia. E finalmente, alforriado pela mão aveludada da lei, ele completa seu caminho de purificação a seu modo, comendo na porrada o chefe da quadrilha.

Mas é bem provável que Sindicato de Ladrões (1954, de Elia Kazan) não fosse o filme que é se Terry não cambaleasse depois da briga, semidesfalecido, amparado por ambos os lados, em direção a uma sôfrega e deliberada reintegração ao seio da ordem que antes o oprimia, ainda que completamente liberto dessa obrigação moral. Coisa semelhante acontece em De Olhos Bem Fechados, porém a elipse se dá agora em sentido contrário; da pureza à putrefação. A mágica é saber como o Dr. Bill Harford, um homem de conduta aparentemente reta, consegue retornar ileso ao jogo da diplomacia conjugal depois de ser submetido às mais diversas provações da sensualidade. Como ele consegue ignorar esse panorama dos modos de operação dos desejos delirantes na vida privada que lhe é oferecido em primeira mão durante um par de noites na alta sociedade novaiorquina? Dessa pergunta, aliás, decorremos uma idéia frequente nos filmes de Kubrick, que perpassa De Olhos Bem Fechados bem acima da superfície imediatamente tátil da perversão – falo da dificuldade de uma relação equilibrada do indivíduo com seu meio, da dramaticidade que aflora das situações nas quais os preceitos mais rudimentares de convivência social vão sendo postos de lado por seus personagens: sejam eles homens ou máquinas, estejam onde estiverem (no front, na corte, no espaço ou cortejando uma ninfeta), o traço dominante parece sempre ser uma total ausência de tino social.

Não há porque pensar que será diferente com Bill e Alice, embora não nos seja difícil, em princípio, aplacar a parcela de culpa que atribuímos à Alice nas andanças de Bill, caso julguemos, como seria óbvio, que ela age de forma mais condizente com o laço matrimonial quando apenas imagina sua fuga fantástica ao invés de vivê-la. Mas é propriedade comum aos atos premeditados endereçados a si mesmo, como a imaginação, que não possuam qualquer efetividade. Logo, se pretendermos equiparar o caráter lustrosamente duvidoso de Alice ao comportamento impulsivo de Bill em sua tímida odisséia por legitimidade (na tentativa de entender por que raios há uma reintegração sôfrega e deliberada ao seio da ordem opressora), sugiro que analisemos seus sonhos.

Diga-se: o verdadeiro crime de Alice foi sonhar e compartilhar seus sonhos. Exatamente o mesmo material onírico que o cético Bill rejeita sempre que se lhe depara.

Grosso modo, é a resultante dessa discordância básica entre o casal que determina a volta arrependida de Bill para casa. A imaginação da mulher trabalha objetivamente – vista sob esse ângulo, a fantasia com o oficial que tanto incomoda Bill seria o menor de seus problemas, uma vez que parece uma saída razoável encontrada por Alice para lidar com suas demandas insatisfeitas –, enquanto o disparate do homem segue a esmo, e particularmente infrutífero, no caso de Bill. Acredito que são os relatos demasiado sensitivos e claustrofóbicos dos sonhos de Alice que suscitam em Bill essa inquietação inconsciente que ele mesmo não compreende. Pois, para todos os efeitos, quando ela sonha, sofre o mesmo impacto emocional da realidade em vigília, e isso para ele é tão ou mais comprometedor do que qualquer baile de putaria.

Seria a morte conjugal para Bill (e da segurança emocional, por conseguinte) dar-se abertura suficiente para compreender que a escória-chic que ele conheceu na cidade noturna possa ter alguma ligação remota com os sonhos freudianos de sua mulher. É por isso que ele amiúde reluta em finalmente encontrar o que procura, num desejo individual, e essa força contrária se mostra de tal ordem que acaba por transformá-lo numa parte do mobiliário, mais uma peça cega entre a austeridade das locações do filme; um entreposto que só faz realçar com seus traços lentos a vileza ilícita e luxuriosa que Kubrick parece querer nos dizer ser perfeitamente desejável – embora tenha seu preço.

Talvez se o Dr. Bill possuísse o traço de caráter que separa os verdadeiros clínicos do restante dos homens (a consciência da putrefação) ele perceberia que se atribuiu mais sobriedade do que um caráter reto costuma suportar.