9.7.10

De Olhos Bem Fechados (1999, Stanley Kubrick)


Em uma das mais chocantes elipses a que um personagem de cinema já foi submetido, acompanhamos a revanche que Terry Malloy (Marlon Brando), um ex-pugilista fracassado, empreende, ao estilo Stanley Kowalski, contra si mesmo e a sociedade. Esse levante auto-infringido, categoricamente rebelde, toma proporções perigosas quando passa a ameaçar os negócios da máfia local (da qual Terry é dissidente) culminando com a morte de seu próprio irmão na insinuação de salvá-lo. Porém, a perda, ao invés de acalmar o “reformista social em combustão”, confere imediatamente um caráter mais abrangente e duplamente mais impetuoso à jornada do personagem, que, embora não se dê conta, passa a justificar uma certa violência contra desvios de conduta e imprecisões morais de qualquer natureza. Não demora que Terry coagule essa violência sob o signo da lei e dê nome aos bois no esquema de tributação ilegal praticado pela máfia. E finalmente, alforriado pela mão aveludada da lei, ele completa seu caminho de purificação a seu modo, comendo na porrada o chefe da quadrilha.

Mas é bem provável que Sindicato de Ladrões (1954, de Elia Kazan) não fosse o filme que é se Terry não cambaleasse depois da briga, semidesfalecido, amparado por ambos os lados, em direção a uma sôfrega e deliberada reintegração ao seio da ordem que antes o oprimia, ainda que completamente liberto dessa obrigação moral. Coisa semelhante acontece em De Olhos Bem Fechados, porém a elipse se dá agora em sentido contrário; da pureza à putrefação. A mágica é saber como o Dr. Bill Harford, um homem de conduta aparentemente reta, consegue retornar ileso ao jogo da diplomacia conjugal depois de ser submetido às mais diversas provações da sensualidade. Como ele consegue ignorar esse panorama dos modos de operação dos desejos delirantes na vida privada que lhe é oferecido em primeira mão durante um par de noites na alta sociedade novaiorquina? Dessa pergunta, aliás, decorremos uma idéia frequente nos filmes de Kubrick, que perpassa De Olhos Bem Fechados bem acima da superfície imediatamente tátil da perversão – falo da dificuldade de uma relação equilibrada do indivíduo com seu meio, da dramaticidade que aflora das situações nas quais os preceitos mais rudimentares de convivência social vão sendo postos de lado por seus personagens: sejam eles homens ou máquinas, estejam onde estiverem (no front, na corte, no espaço ou cortejando uma ninfeta), o traço dominante parece sempre ser uma total ausência de tino social.

Não há porque pensar que será diferente com Bill e Alice, embora não nos seja difícil, em princípio, aplacar a parcela de culpa que atribuímos à Alice nas andanças de Bill, caso julguemos, como seria óbvio, que ela age de forma mais condizente com o laço matrimonial quando apenas imagina sua fuga fantástica ao invés de vivê-la. Mas é propriedade comum aos atos premeditados endereçados a si mesmo, como a imaginação, que não possuam qualquer efetividade. Logo, se pretendermos equiparar o caráter lustrosamente duvidoso de Alice ao comportamento impulsivo de Bill em sua tímida odisséia por legitimidade (na tentativa de entender por que raios há uma reintegração sôfrega e deliberada ao seio da ordem opressora), sugiro que analisemos seus sonhos.

Diga-se: o verdadeiro crime de Alice foi sonhar e compartilhar seus sonhos. Exatamente o mesmo material onírico que o cético Bill rejeita sempre que se lhe depara.

Grosso modo, é a resultante dessa discordância básica entre o casal que determina a volta arrependida de Bill para casa. A imaginação da mulher trabalha objetivamente – vista sob esse ângulo, a fantasia com o oficial que tanto incomoda Bill seria o menor de seus problemas, uma vez que parece uma saída razoável encontrada por Alice para lidar com suas demandas insatisfeitas –, enquanto o disparate do homem segue a esmo, e particularmente infrutífero, no caso de Bill. Acredito que são os relatos demasiado sensitivos e claustrofóbicos dos sonhos de Alice que suscitam em Bill essa inquietação inconsciente que ele mesmo não compreende. Pois, para todos os efeitos, quando ela sonha, sofre o mesmo impacto emocional da realidade em vigília, e isso para ele é tão ou mais comprometedor do que qualquer baile de putaria.

Seria a morte conjugal para Bill (e da segurança emocional, por conseguinte) dar-se abertura suficiente para compreender que a escória-chic que ele conheceu na cidade noturna possa ter alguma ligação remota com os sonhos freudianos de sua mulher. É por isso que ele amiúde reluta em finalmente encontrar o que procura, num desejo individual, e essa força contrária se mostra de tal ordem que acaba por transformá-lo numa parte do mobiliário, mais uma peça cega entre a austeridade das locações do filme; um entreposto que só faz realçar com seus traços lentos a vileza ilícita e luxuriosa que Kubrick parece querer nos dizer ser perfeitamente desejável – embora tenha seu preço.

Talvez se o Dr. Bill possuísse o traço de caráter que separa os verdadeiros clínicos do restante dos homens (a consciência da putrefação) ele perceberia que se atribuiu mais sobriedade do que um caráter reto costuma suportar.